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segunda-feira, 19 de março de 2012

A Memória como Instrumento: Produzindo Novas Armas no Combate à Tortura

PATRÍCIA PETERLI PARTICHELLIPsicóloga. Mestranda em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo. Membro do Centro de Apoio aos Direitos Humanos “Valdício Barbosa dos Santos (Léo)” – CADH. patriciapeterli@gmail.com.

Resumo:
O presente artigo problematiza a construção do que vem a ser considerado como história oficial brasileira e a utilização da memória como enfrentamento ao regime de silenciamento imposto para que parte da história seja ofuscada e não produza transformações no presente. Tal reflexão passa pela desconstrução da noção de pobreza atrelada à criminalidade e naturalização das violações dos direitos humanos, sobretudo, direcionadas aos segmentos pauperizados e pela tortura como prática que não ficou restrita à escravidão ou aos porões do regime militar.
Palavras-chave: memória; combate à tortura; história.

História e Memória

“A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer"
       -Graciliano Ramos, 1948-.

Em 2012 o Brasil completa uma década de adesão ao Dia Mundial de Combate à Tortura, e é fundamental falarmos dessa prática e das inúmeras tentativas que estão colocadas para que se tenha a impressão de que ela ficou num passado ofuscado, distante.
É cheirando aos acontecimentos passados e presentes na história desse país que este artigo, então, se propõe a dizer, com a potência acima defendida por Graciliano Ramos, acreditando em outras possibilidades de se escrever a história, contadas por qualquer um e não somente pelos santos, pelas vítimas ou pelos tiranos, como nos anunciou o italiano Alessandro Portelli (1997).
Apostando, também, que promulgar histórias de lutas travadas cotidianamente, sem legendas ou reconhecimento, se coloca como resistência a um poder que massifica e impõe uma história linear e que dá os créditos aos seus heróis e mocinhos em conivência com os interesses de uma classe dominante. As narrativas dos “vencidos”, das histórias comuns que podem ser interessantes e contatadas por qualquer um, são substituídas pela “história oficial celebrativa” (CHAUÍ, 1994, p. xviii), ofuscando os elementos heterogêneos que compõem a história.
 O “sequestro da memória” dissipado pelos meios de comunicação de massa divulga uma história homogênea, oficializada por binaridades que marcam os lugares dos vencedores – os “bons”, os heróis – e dos vencidos – os rebeldes, os bárbaros –, aqueles que geralmente perderam a luta porque precisavam mesmo ser eliminados pelo bem de uma nação. Banidos. Exterminados em nome da segurança nacional.
Uma intensa produção de silenciamento dos “vencidos” continua a tentar calar a resistência política desses personagens da história a favor da vida, que carregam nas marcas e no corpo o peso do funcionamento perverso de um modelo econômico.
O que a hegemonia considera ignorância, este artigo considera parte. Tão importante quanto. Igual em interesse, e especialmente interessante por falarmos de memórias daqueles que, mesmo sem reconhecimento pelas tantas lutas, e por elas exterminados, e por elas torturados, e, em nome de tantos, amontoados como monturos, queimados nas novas fogueiras da modernidade – os alvos das armas legitimadas pelo Estado –, participaram ativamente de uma luta coletiva pela transformação de um país. E participam. Gente com voz ativa e política, ao contrário do que tentam afirmar ao pregarem em suas peles a figura de bárbaros, rebeldes, os novos subversivos, como tarja que causa medo e insegurança na “caça as bruxas” dos nossos dias.
Acuada pelo medo e insegurança, a sociedade incorpora em sua prática ações de intolerância suavemente disparadas no cotidiano, tão violentas quanto as ações do Estado contra uma parcela considerada moralmente inferior e causadora de desordem, institucionalizando a violação dos direitos humanos. Segundo Passos (2002), “Há microviolências do cotidiano que indicam uma sinistra interiorização do Estado violento em nós” (p.256).
É para iluminar histórias de gente sem nome nem identidade, sem assinatura ou medalhas e que lutam em nome de um coletivo que estas linhas se colocam. Coletivo, conforme afirma Guattari (1992), é entendido

[...] no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos (p. 20).

Personagens anônimos da história de um país, medíocres, apesar dos gritos, dos sussurros, dos cartazes e do sangue derramado. Histórias sem representatividade e repletas de fragmentos de uma realidade da qual compartilham, como colocou Foucault (1977) acerca d’A vida dos homens infames.
E para enxergar essas vidas é preciso acender um foco de luz. Um feixe que permita tirar da obscuridade as vidas que a cada dia têm sido mais silenciadas. Caladas. Emudecidas. Costurar a história a partir de outras linhas permite ampliar o mundo.

Divertamo-nos, se quisermos, vendo aí uma revanche: a chance que permite que essas pessoas absolutamente sem glória surjam do meio de tantos mortos, gesticulem ainda, continuem manifestando sua raiva, sua aflição ou sua invencível obstinação em divagar, compensa talvez o azar que lançara sobre elas, apesar de sua modéstia e de seu anonimato, o raio do poder (FOUCAULT, 2006, p.210).

É iluminando estes pontos obscuros da história que poderemos abrir discussões sobre práticas que não ficaram num passado remoto, no segredo da história ou no porão de uma memória.
Práticas como a tortura, que na ditadura militar brasileira ceifou a vida de inúmeros militantes, não podem ficar estranguladas por um silêncio que hoje continua a torturar seus familiares e matar outras vidas que denunciam no corpo e na forma de vida ou sobrevida de se colocarem no mundo, o funcionamento da lógica capitalista.
Pensar a tortura como crime de lesa-humanidade, sem prescrição e inafiançável, permite não somente resgatar a memória política do Brasil, mas combater práticas semelhantes que têm por objetivo banir a massa humana excedente e produzida pelo capitalismo.
Arejar a memória e resgatar a amplitude política de algumas ações consideradas imorais e de “vazia rebeldia”, ajudam a ativar a potência política que clama por transformação de uma realidade que não ficou estancada nas cartilhas de história do Brasil.

Segurança Criminal em resposta à Insegurança Social: a produção do medo e a criminalização da pobreza em questão

Quem se defende porque lhe tiram o ar
ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem não come    o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender
-Bertold Brecht-.

Brasil, cenário neoliberal. Produção planetária e em série de formas de viver, sentir e agir, para consumo de todas as formas e gostos. De acordo com Rolnik (1997), a “produção de kits de perfis-padrão” permite que estas formas de vida sejam dissipadas pela mídia e consumidas de acordo com cada órbita do mercado como produtos-padrão, como formas de vida homogêneas.
Num mundo onde o consumo – seja de formas de vida, seja de mercadorias – é o imperativo, o trabalho é o carro-chefe para que as pessoas se sintam incluídas na lógica de mercado. E não se trata de qualquer trabalho, o emprego fixo é o que se vislumbra, na busca por uma ponta de estabilidade em meio ao turbilhão de informações e inconstâncias. Segundo Coimbra (2001),

[...] desde o início do nosso século o Estado brasileiro e seus diferentes dispositivos vêm produzindo subjetividades nas quais o ‘emprego fixo’ e uma ‘família organizada’ tornam-se padrões de reconhecimento, aceitação, legitimação social e de direito à vida. Fugir desses territórios modelares significa ingressar na enorme legião dos ‘perigosos’, daqueles que devem ser olhados com desconfiança e, no mínimo, afastados e evitados (p.131).

Esta “legião de perigosos” se torna alvo a partir do dispositivo da periculosidade, que, segundo Foucault (2009), surge com a emergência do capitalismo industrial, na Europa, em fins do século XIX. Caracteriza-se por direcionar o foco não somente para as ações que o indivíduo tenha praticado, mas também para as que ele poderá praticar, no controle das suas virtualidades realizado através de técnicas de saber/poder, de leis e submissão a normas.
Os “perigosos”, neste sentido, passam a ser aqueles que não conseguem atender à lógica de consumo e são considerados como perigosos em “si”, em sua natureza, sua essência. Segundo Bauman (1998), estes são os chamados “consumidores falhos”, os que não conseguem atender às exigências do mercado e que, por isso, são produzidos como seres estranhos e ameaçadores da ordem, causadores, portanto, de insegurança e mal-estar.
Colocando em questão estas produções, temos, então, a competição de parte da população por uma suposta estabilidade no mercado de trabalho, para que atenda à lógica de consumo, ao par que outra parte sequer tem possibilidades de disputa, causadora de repulsa por essência e composta por seres indesejáveis, demônios criminosos em potencial. A saída para esta parcela é buscar empregos inseguros e desqualificados com salários igualmente desqualificados e inseguros (Wacquant, 2008).
A produção de desejo que é para todos acaba por erguer um muro que separa o mundo entre aqueles que têm os meios para participarem deste consumo, e aqueles que não têm.
As parcelas empobrecidas da população, neste embalo, são criminalizadas como se a periculosidade e a repulsa fossem seu recheio, prestes a prejudicar, desordenar e sujar o cenário tão sonhado de pureza social. Figuras suspeitas são produzidas, apavorando as misturas destes segmentos pauperizados com a parte asséptica da população. Assim, ferve um discurso que clama por afastamento e eliminação da pobreza, como se isso traduzisse segurança. Conforme afirma Coimbra (2009),

Para esses ‘enfermos’ – vistos como perigosos e ameaçadores – são produzidas identidades cujas formas de sentir, viver, agir se tornam homogêneas e desqualificadas. São crianças e adolescentes já na marginalidade ou que poderão – porque pobres – ser atraídos para tal condição e que devem ser exterminados. A modernidade exige cidades limpas, assépticas, onde a miséria – já que não pode mais ser escondida e/ou administrada – deve ser eliminada. Eliminação não pela superação, mas pelo extermínio daqueles que a expõem incomodando os ‘olhos, ouvidos e narizes’ das classes mais abastadas (p.320).

Com a proliferação dos discursos que clamam pelo extermínio da massa podre da população, cada vez mais tem sido reproduzida a idéia de segurança como se ela se tratasse de policiamento, fortalecimento do Estado que se apresenta fortemente armado para controle e contenção dos segmentos empobrecidos, ressoando a idéia de que são potencialmente criminosos, e, por isso, podem incomodar a paz e a vida digna dos legitimados “cidadãos de bem”.
Segundo Wacquant (2007), este sentimento de insegurança e de ilusão de que a segurança seria fornecida pelo Estado através de segurança criminal é resultado de um acuamento do Estado Social, que não mais protege as oscilações e riscos da economia, mas que “capacita” para a competição no mercado. A insegurança de nunca estar suficientemente capacitado abarca inclusive a classe média, que não consegue projetar seu próprio futuro. Em resposta ao pedido por estabilidade de vida e distanciado da responsabilidade pelas demandas sociais, o Estado investe em segurança criminal e políticas penais. Sobre esta mesma questão, afirma Foucault (2010),

O que o Estado propõe como pacto com a população é: ‘Vocês estarão seguros’. Garantidos contra tudo o que pode ser incerteza, acidente, prejuízo, risco. Vocês estão doentes? Terão a seguridade social! Não têm trabalho? Terão um seguro-desemprego! Há um vagalhão? Criaremos um fundo de solidariedade! Há delinqüentes? Vamos assegurar-lhes sua correção, uma boa vigilância policial! (p.172)

Este funcionamento, ao passo que desresponsabiliza o coletivo, afirma um discurso de responsabilidade individual e uma lógica de meritocracia que atribui o “sucesso” às qualidades individuais, em contrapartida, reforçando o dito “fracasso” igualmente, como inferioridade do indivíduo em relação aos demais.
Toda essa engenharia também funciona por meio da produção de um silêncio que emperra a discussão das questões de modo a reduzi-las a um campo individual, tendo como efeito a culpabilização do indivíduo e a imposição de uma outra política acerca dos acontecimentos e que interessa a determinados grupos. Acontecimentos estes, ecoados pela mídia de maneira superficial e sensacionalista.
A própria sociedade demanda por políticas punitivas, por mais policiamento nas ruas, redução da maioridade penal, mais prisões e pela presença de um Estado violento e repressor dos seus inimigos. E a produção da figura do “inimigo” é perigosa porque atrelada a ela está o discurso de que toda ação é permitida para sua eliminação.  
Os novos “inimigos internos”, diferentes daqueles que se opunham ao regime militar, hoje, transitam em meio ao discurso democrático e são produzidos juntamente com a forma de exterminá-los, ofuscá-los, arremessá-los para zonas de esquecimento e calá-los, para que não denunciem em seus corpos e vivências o funcionamento de um mundo produzido por todos, coletivamente.

Uma nova ‘Doutrina de Segurança Nacional’ tem hoje como seu ‘inimigo interno’ não mais os opositores políticos, mas os milhares de miseráveis que perambulam por nossos campos e cidades. Os milhares de sem teto, sem terra, sem casa, sem emprego que, vivendo miseravelmente, põem em risco a ‘segurança’ do regime (COIMBRA, 2002, p.84)

Um discurso moral e individualizante reduz as imensas parcelas empobrecidas da população e as silencia, como se não fossem dignas de denunciar as violências cometidas contra elas diariamente. Este mesmo discurso é o que continua a tentar silenciar os familiares e sobreviventes da ditadura militar brasileira, com a produção da ignorância sobre este período e descaracterizando-o, colocando-o num plano comum da história.
E por falar em violência, é após estas pontuações até aqui que poderemos abrir caminhos de conversas sobre os acobertamentos de perversidades como a tortura na atualidade.
  
Escancarando a tortura: caminhos para uma conversa sobre o silenciamento

O medo seca a boca, molha as mãos e mutila. O medo de saber nos condena a ignorância; o medo de fazer nos reduz a impotência. A ditadura militar, medo de escutar, medo de dizer, nos converteu em surdos e mudos. Agora a democracia, que tem medo de recordar, nos adoece de amnésia; mas não se necessita ter Sigmund Freud para saber que não existe o tapete que possa ocultar a sujeira da memória
                                                      -Eduardo Galeano-.


Diferentemente do suplício, prática punitiva adotada até fins do século XVIII que se direcionava ao sofrimento do corpo, em público, de maneira a reafirmar o poder do Soberano (Foucault, 1977), a passagem para a sociedade disciplinar fomentou a prática da tortura, que tem como prerrogativas o escuro, o direcionamento perverso das relações em conivência com uma certa política dominante e a omissão.

A tortura, ao contrário do suplício, sempre foi e sempre será apenas um pastiche das grandes performances humanas: morais, políticas, religiosas ou científicas. Uma prática dos porões, das sombras, dos sem rosto e sem voz, dos sem história. A tortura só existe na história dos torturados (SILVA, 2009, p.86. grifo meu).
Não. A prática da tortura não ficou soterrada pela poeira do passado, tampouco restrita às senzalas ou aos governos ditatoriais. Continuam vigorando práticas de terror, tortura, silenciamento e acobertamento de crimes cometidos contra os direitos humanos.
O caminho que percorremos tratando do aparecimento das chamadas “classes perigosas” objetivou atentar para práticas de violência e tortura de forma difusa e direcionada agora principalmente aos setores empobrecidos, o que na ditadura se focava no combate aos opositores políticos.
Desde 1977, por meio da lei no 9.455, o Estado brasileiro passou a considerar oficialmente a tortura como crime. De acordo com a Convenção da ONU Contra a Tortura (1984):
[...] o termo ‘tortura’ designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puni-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência. (Artigo 1 da Resolução 39/46, da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984.
Apesar desta consideração, percebemos a intensa luta de familiares – seja dos desaparecidos políticos, seja dos tantos chacinados na atualidade – pelo combate à impunidade. Não bastasse a dor de terem perdido entes queridos, precisam lutar avidamente pelo reconhecimento de seus mortos, ou, ainda, são obrigados a ouvir nos telejornais diários as justificativas para tais atos, como se fossem justificáveis: “era bandido”, “era envolvido com o tráfico”, “era viciado em drogas”.
O mesmo movimento de desumanização de uns em detrimento de outros. E a imposição de um regime de silenciamento que impede que tais acontecimentos sejam investigados e tenham seus responsáveis punidos, pois é como se “em si” esses crimes fossem aceitáveis e produzissem nas vítimas a culpabilização necessária para que eles pudessem ocorrer.

Muitas vezes o crime permanece impune porque, mesmo que sua autoria seja conhecida, não existe nada sendo feito que transforme tal conhecimento em um justo julgamento e condenação. Esses familiares são as “vítimas ocultas” que não aparecem nos dados estatísticos de morbi-mortalidade da violência. Essas vítimas sofrem muito, sozinhas e desamparadas (JORGE, 2009, p.262).

A tortura do corpo e da memória só se torna possível quando o “Outro” é considerado moralmente inferior. Quando sua existência representa perigo. E, sob um discurso de proteção da pátria, da população ou eliminação dos riscos, autoriza-se e credibiliza-se ações de extermínio com a roupagem de defesa da sociedade.
Segundo Foucault (2005), é com a introdução do racismo nos mecanismos do Estado que se tornou possível a legitimação da eliminação de uns em defesa de outros. A noção de racismo de Estado, neste sentido, se traduz como um corte entre o que deve viver e o que deve morrer, como se a morte de uns imprimisse qualidade à vida de outros. Morte, aqui, não diz somente da morte biológica, mas formas indiretas de assassínio como a morte política, a rejeição ou a exposição à morte.
A partir deste entendimento, mais claro se torna o clamor da população e as ações do Estado por políticas punitivas, por policiamento e eliminação dos potencialmente perigosos, como se isso traduzisse segurança aos demais, aos que oficialmente compõem a sociedade.
Torna-se necessário problematizar, também, práticas de legitimação da tortura para obtenção de confissões que têm sido utilizadas como ferramenta justamente por aqueles que deveriam combater e punir tais práticas (Mourão, Jorge, Francisco, 2002). Pois esta forma de funcionamento só é possível quando a tortura de uns é justificável mediante o discurso de defesa e proteção de outros.
Um discurso que encobre e silencia as lutas daqueles que sobreviveram ou que tiveram familiares mortos, triturando a história com o trator de uma verdade que convém a uma classe dominante. Conforme afirma Coimbra (2008),

A não publicização, o esquecimento e o silenciamento produzem uma dupla violação: além da que foi sofrida – se nenhuma atitude for tomada por parte do atingido e/ou das autoridades governamentais – continua-se, no dia a dia, a ser violentado. O desrespeito do esquecimento, do silenciamento, da não investigação, do não esclarecimento dos fatos e da não publicização significam novas violações (p.12).

Mas a resistência é sempre possível, a luta por outras memórias, outras verdades e por outros fragmentos da história sempre insiste em se colocar. A memória como instrumento de luta é no que apostamos.

Pela afirmação de outras memórias: produzindo novas armas

Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada.
            –Eduardo Galeano-.

Como colocamos, há um investimento para que partes da história do Brasil não sejam contadas, não sejam estampadas na memória brasileira. A produção de um silenciamento que se dá muitas vezes nem diretamente pela mudez, mas pela blindagem dos ouvidos a outros fragmentos da história. A outras vozes que tornam públicas as marcas que tentaram deixar enterradas nos porões, afogadas nos barris e cortadas pelas navalhas do passado. Porque elas pedem por responsabilização, por investigação e combate à cultura de ignorância que tem sido implementada para que as novas gerações não sejam esclarecidas deste período da história e sequer tenham condições de avaliar as produções atuais que ainda remetem a estas práticas.
Não por acaso os torturadores colocavam adesivos em seus nomes nas fardas. Não por acaso, arquivos da ditadura militar brasileira são desconhecidos pela sociedade. Porque denunciam a perversidade de um regime que até hoje cala e mortifica os familiares dos desaparecidos que não têm esclarecimentos acerca de seus entes queridos.
Numa lógica não tão divergente, inúmeros familiares não possuem investigação que esclareça a morte dos seus, principalmente quando falamos de crueldades que acontecem em nome das ações que exterminam miseráveis e são divulgadas como um verdadeiro ato de “levar a paz” a uma sociedade que vivia numa suposta “guerra”. Novamente está presente a produção da figura do inimigo. Inimigo este, que precisa ser combatido por uma guerra que, ao final, faça reinar a paz. E nesta lógica perversa isso não é uma contradição: a idéia de “guerra civil” é justamente implementada para que, no combate ao inimigo, todo tipo de ação seja autorizado. E para combater os endurecimentos da história, a memória deve ser usada como ferramenta. Instrumento de enfrentamento. Produção de outras memórias que possibilitem que novas histórias sejam compostas de maneira a dobrar essa lógica do poder que massifica acontecimentos e os arremessa para uma “vala comum” da história.
E é tornando público, falando sobre estas capturas, criando espaços que traiam este silêncio, o medo de falar, a angústia do segredo, que pontos de potência vão surgindo. Conforme afirma Foucault (2010),

[...] designar as sedes, denunciá-las, falar delas em público é uma luta, não é porque ninguém tivesse ainda consciência disso, mas é porque tomar a palavra sobre esse assunto, forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez o quê, designar o alvo, é uma primeira revirada do poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder (p.44).
 E tais dobras no poder já acontecem no nível das práticas cotidianas, na potência dos movimentos sociais que denunciam e que revertem tais políticas perversas produzindo novos modos de ser e agir neste mundo.
A publicização da ação violenta autorizada pelo Estado contra os moradores de Barra do Riacho, distrito de Aracruz, Espírito Santo, desapropriados de suas moradias em maio de 2011. Os resistentes de Pinheirinho, São Paulo, que de forma semelhante foram arrancados de suas casas em janeiro de 2012. Resistências diárias. Lutas cotidianas. Enfrentamentos que se dão numa luta pela vida. A favor da vida. Pela intensificação da vida. Contra o massacre e o envenenamento da vida. Uma luta pela memória. Produção de outras memórias. Nada mais potente do que acreditar que as fugas existem. Nada mais potente do que fugir, ecoando Deleuze (1977): "[...] não há nada mais ativo do que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir, não forçosamente os outros, mas fazer fugir alguma coisa, fazer fugir um sistema como se cava um túnel" (p.51).
Cavar um túnel: encontrar armas. Tornar público o que está sob um discurso dominante de defesa de uma determinada forma de vida - nas entrelinhas o massacre da vida manifestada em tantas outras formas, não menos vivas. Tornar público significa produzir memórias de todos, para todos. Memórias embutidas nos corpos daqueles que estiveram ou não na ditadura, dos moradores de Barra do Riacho ou não. Uma história que implique a participação de todos e luta de todos.
Disse Eduardo Galeano que “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador”. É pela história dos leões que este artigo ruge, pela afirmação da vida.
A fala, a denúncia, o tornar público, nos retiram do território do segredo, do silêncio, da clandestinidade. Com isso podemos sair do lugar de vítima fragilizada, despotencializada e ocuparmos o da resistência, da luta, daquele que passa a perceber que seu caso não é um acontecimento isolado; ele se contextualiza, faz parte de outros e sua denúncia, esclarecimento e punição dos responsáveis abre espaço e fortalece novas denúncias, novas investigações. A dimensão coletiva desse caminho se afirma e, com isso, temos a possibilidade de começar a tocar na impunidade; de mostrar que tal quadro (...) pode ser mudado, pode ser revertido (COIMBRA, 2004.p.45).



REFERÊNCIAS

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