AULO HENRIQUE MIOTTO DONADELIAdvogado, Mestre em Direito do Estado,
Docente do Curso de Direito da UNESP/Franca e do Curso de Direito do UNISEB COC
de Ribeirão Preto.
Percebe-se
que a sociedade contemporânea vive com medo e acuada, onde o cidadão de bem se
tornou refém da ação de criminosos. O Estado não consegue de forma eficiente
agir para conter a violência, que tem comprometido a paz social, as instituições
públicas e até o direito. Muito se tem discutido em torno do tema da violência,
mas pouco se tem feito na prática. Os legisladores pensam que a solução para a
criminalidade é a tipificação de novas condutas e o aumento das penas
existentes. No entanto, esta questão vai além do Direito Penal, e envolve temas
como a exclusão social, a falta de investimentos em políticas públicas de
segurança e o sentimento de impunidade gerado a partir da ineficiência da
aplicação da lei penal. O controle social está
inserido na estrutura econômica, política e jurídica do Estado, existindo uma
relação estreita entre as instituições punitiva e produtiva, entre o princípio da legalidade
penal e os princípios econômicos.
A idéia central do nosso estudo parte do pressuposto de que Estado,
por meio do princípio da legalidade, regula o poder punitivo, visando manter a
ordem social. O poder econômico é um fenômeno da realidade social, cuja
regulação abrange os mais variados campos jurídicos, em especial o Direito
Penal. A legalidade Penal vista como uma conquista do Estado de Direito, e
entendida como um direito humano fundamental de primeira geração, não pode ser
utilizada como instrumento de garantia de um sistema econômico, mas tem que
contribuir para a consolidação de um sistema penal justo e adequado
socialmente. O Direito Penal tem que ser um instrumento de efetivação dos
direitos humanos, por meio da tutela dos bens jurídicos fundamentais da
sociedade, não um instrumento da manutenção da classe econômica dominante.
O
presente trabalho quer colocar em discussão a questão: Qual a missão do direito
penal e como se libertar das teias do tecnicismo jurídico e dos interesses
econômicos numa sociedade dividida em classes? Para responder esta pergunta, é
preciso entender quais são os critérios lógico-jurídicos utilizados na
formulação das leis penais, analisando qual o nível de influencia dos
interesses econômicos no sistema punitivo do Estado. A
reflexão perfaz um estudo sociológico, político, histórico e econômico do
Direito Penal, para tentar entender que as causas do problema estão enraizadas
no modelo econômico e nos valores adotado pela sociedade.
O
sistema econômico capitalista se consolidou durante a Idade Moderna, época em
que o capitalismo vai da fase de circulação de mercadorias para a produção de
mercadorias, fundamentando-se na exploração da mais valia, visando à acumulação
privada. A lógica da reprodução econômica baseou-se nos pressupostos da
liberdade negocial, da igualdade jurídica e na necessidade da propriedade privada
dos meios de produção, e ganhou efetividade na estabilidade da lei, por meio do
direito positivo burguês criado pelo Estado burguês[1].
Com
o advento do Estado de Direito o poder político perde seu caráter absoluto e passou
a se exercido dentro dos limites impostos pela burguesia, agindo apenas dentro
da legalidade, isto é, das normas positivadas. A política passa a ter como
limite os direitos fundamentais, a liberdade contratual, a igualdade formal, a
propriedade privada e a segurança jurídica. O Estado de Direito colocou a
política como refém da lógica econômica, onde a lei passou a ser o garantidor
da reprodução econômica[2].
A
modernidade dá ao direito uma estruturação técnica e a sociedade passa a ter o
domínio das legislações e das decisões. O direito torna-se mecânico, impessoal
e previsível, e isto permitiu ao burguês dominar melhor os seus negócios, pois
conhecia o teor da lei e da decisão dos juizes. O direito impõe uma técnica
universal baseada na técnica do contrato capitalista e o sujeito de direito
universal é o burguês[3].
O Estado de Direito estabeleceu seu Estatuto Jurídico Penal, de
modo a ser cumprido e respeitado por todos, a fim de evitar o retorno ao estado
de natureza. Deste modo, o Estado, em
nome da garantia da tutela patrimonial e das liberdades individuais, legitimou
como detentor legal do monopólio da violência, colocando-se como legítimo
detentor do poder capaz de manter a ordem social, evitando a justiça com as
"próprias mãos".
O Direito Penal, baseado no princípio da legalidade penal, fruto
do Movimento Iluminista, exige que a intervenção punitiva do Estado na
sociedade deve ser limitada pelo direito positivo, como maneira de se evitar
que o poder punitivo seja exercido de forma arbitrária e ilimitada. O Estado define o que pode e o que não pode ser praticado
pelas pessoas. Somente é crime aquilo
previsto na lei, como também, a pena só pode ser aplicada dentro dos limites
legais. O princípio da legalidade penal permite ao indivíduo se orientar
de acordo com a lei, pois tudo que não for expressamente proibido por lei é
permitido fazer ou deixar de fazer. A definição do
crime evita a ameaça geral à segurança das pessoas e de seus bens e o
sentimento de punição fortalece a observância das normas. O crime e a punição
são elementos necessários, que estão ligados às condições fundamentais de
qualquer vida social.
Embora a função declarada do Direito Penal seja a garantia da sobrevivência
da sociedade, por meio da tutela dos bens jurídicos fundamentais, este controle penal cumpre funções diversas, servindo
como instrumento de legitimação ou reprodução ideológica da realidade política
e econômica da sociedade. Neste sentido, a pena existe como uma forma de
controle, fundamentada nos interesses capitalistas. O sistema punitivo traz de tempos passados à
característica marcante da pena como uma vingança ao mal praticado pelo
criminoso. O controle penal moderno, constituído a
partir do século XVIII, está vinculado ao nascimento do Estado Moderno,
burocrático, racionalizado e centralizado.
A
consolidação da legalidade só foi possível com a vitória do modelo capitalista.
“A liberdade dentro das leis, principio da legalidade, era irmã da liberdade de
mercado”[4]. A
legalidade permite o estabelecimento de uma igualdade formal isto é, a
igualdade perante a lei, que na óptica econômica todos se igualam na condição
de consumidores. Mas, essa igualdade perante a lei esconde no seio social a
injustiça real, a coerção econômica, a desigualdade entre as classes, a falta
de oportunidades, a indignidade de muitos. A legalidade no capitalismo,
fundamentado na igualdade jurídica, permite que se legitime a desigualdade
social existente[5].
Georg
Rusche e Otto Kirchheimer, buscando entender as causas da pena na lógica do
capital, na obra Punição e estrutura
social[6] faz
uma analise das relações entre o crime e o meio social, mostrando o nascimento
da pena privativa de liberdade como forma burguesa de punição. A obra baseia-se
no princípio de que as condições de vida no cárcere são inferiores às das
categorias mais baixas dos trabalhadores livres, de modo a constranger ao
trabalho e salvaguardar os efeitos dissuasivos da pena, relacionado ao mercado
de trabalho.
Dário
Melossi e Massimo Pavarini no livro
Cácere e Fábrica [7] monstram
a relação do mercado e a pena privativa de liberdade, aderindo a tese de que
cada sistema de produção descobre o
sistema de punição que corresponde às suas relações produtivas. A obra insere as
questões do crime e do controle social na estrutura econômica e no sistema de
poder político e jurídico das sociedades contemporâneas, pensadas na tradição
marxista, que exprime a integração das forças produtivas nas relações de
produção históricas, nas quais se manifesta a luta de classes da formação
social capitalista.
São obras históricas que revêem os conceitos do controle
punitivo, utilizando dos estudos sociológicos analisados a partir do paradigma
da reação social, que dão impulso a fomentação teórica da Criminologia Crítica.
As obras buscam explicar a passagem de práticas punitivas que estavam antes
mais centradas nos castigos físicos dos condenados, para o método punitivo
central do controle penal moderno, qual seja, a pena privativa de liberdade. Estas
análises contribuem para a compreensão do moderno direito penal, sem
o caráter ideológico.
O
sistema penal está em crise, predominando na sociedade um sentimento pessimista
sobre os efeitos da pena no combate a criminalidade e na reeducação do agente
criminoso. A questão da legitimidade do direito penal e do sistema punitivo de
uma sociedade é uma questão ligada à legitimidade do Estado, enquanto monopólio
organizado do uso da força. Com isso, pode-se afirmar que a compreensão do
funcionamento do poder punitivo exige uma analise da estrutura social e dos
princípios econômicos que norteiam o poder.
A
pena sempre desempenhou crucial papel na política de controle social, em razão
de sua contundente eficácia neutralizante. O poder punitivo cria tratamentos
diferenciados entre os seres humanos e lhes confere um tratamento punitivo que
não corresponde à condição de pessoas humanas, e isso fere a dignidade da
pessoa humana, que é o objeto da conquista histórica dos direitos humanos. O capitalismo influenciou as leis penais como
um recurso de favorecimento da classe dominante, servindo para justificar a
desigualdade social.
O
sistema punitivo estatal é influenciado pela racionalidade da economia burguesa,
onde mais importa a tutela do patrimônio do que as pessoas. É fundamental fazer
uma reflexão em tono da necessidade de se rever o positivismo jurídico-penal,
por meio de um discurso crítico que não aceite o excesso punitivo, buscando alternativas
que garantam uma outra realidade penal, opondo-se ao movimento de
criminalização da pobreza, que causa aumento criminalidade e da violência
social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MASCARO, ALYSSON
LEANDRO. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo:
Quartier, 2003.
MELOSSI, Dário;
PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição
e Estrutura Social. Rio de Janeiro: Revan, 2004 (Coleção Pensamento
Criminológico).
Notas:
[1]
MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. São Paulo: Quartier,
2003. p. 31, 33.
[2] MASCARO, op. cit., 2003. p. 23.
[3] MASCARO, op. cit., 2003. p. 47.
[4] MASCARO, op. cit., 2003. p. 22.
[5] MASCARO, op. cit., 2003. p. 23.
[7] MELOSSI,
Dário; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. Rio de Janeiro:
Revan, 2004.
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