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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Crítica da Cidadania como vista pelos juristas - Parte 1


  A cidadania é um dos temas mais debatidos nos círculos jurídicos na atualidade, mas o que significa este termo tantas vezes empregado? Ulysses Guimarães se referindo à Constituição de 88 dizia de uma “Constituição Cidadã”, uma melhora em um serviço público por parte do governo é considerada uma demonstração de cidadania, como também manifestações como a parada gay são interpretados como expressão desta. Cidadania tornou-se um termo com múltiplos sentidos sendo muito difícil defini-lo, mas podemos perceber que associado a este termo há sempre certa concepção de justiça, especialmente de justiça social, voltada para a proteção dos oprimidos ou para o exercício de um direito de todos.

Mesmo com tanta cidadania por aí, qualquer pessoa ao defrontar-se com o mundo acaba por se perguntar por que ele é tão injusto. Fome, frio, desamparo, idosos e crianças morando na rua, sem educação, sem abrigo, sem o mínimo de alimento para poder se desenvolver.
Por que tantas pessoas passam necessidades enquanto outras, num número bem mais reduzido, podem usufruir os mais diversos luxos? O que explica o fato de um brasileiro deter, sozinho, cerca de trinta bilhões de dólares enquanto grande parte dos outros vive com cerca de quinhentos reais por mês. O que é a Justiça e o que é a cidadania em nossa sociedade? É este o tipo de justiça e de cidadania que queremos?
Perguntando-nos coisas assim, possibilitamos o surgimento de uma visão mais crítica de nossa própria vida e de nossa relação com os outros. Questionando a fundo nossa forma de ser em sociedade abre-se espaço para uma prática diferente da atual, que permita a transformação do já existente em algo melhor.
Os juristas quando se enveredam por este caminho, de questionar o presente visando a construção de um futuro melhor, geralmente o fazem diretamente por meio de seu campo, sua área de conhecimento. Costumam se perguntar como devem ser as normas jurídicas, que novos tipos de direitos devem ser criados e como enquadrá-los no sistema vigente, para a melhoria de nossa sociedade a partir do ponto onde ela hoje se encontra.
Com a crescente especialização do mundo atual, com a divisão cada vez mais acentuada do trabalho, o próprio campo jurídico é fragmentado e passa-se a não existir apenas advogados, mas sim tributaristas, penalistas, civilistas, ambientalistas e por aí em diante. Cada um, ao pensar A Justiça, acaba pensando apenas dentro do fragmento que compõe sua área de atuação profissional, não extrapolando sua seara. Entende-se como profissional antes de ser humano, limitando-se a estudar tão somente o objeto de seu ganha-pão. Isto representa um grande problema para uma justiça mais ampla, uma justiça não fragmentária.
O próprio conhecimento jurídico como um todo é fragmento do conhecimento geral, só dividido desta forma para fins didáticos. O próprio direito também, por mais que os juristas tenham tentado separá-lo, ainda é fragmento do todo social. Mesmo se apresentando em nossa sociedade como norma estatal, o que lhe confere poder de coerção, em nada modifica seu caráter de parcialidade, seu caráter de parte de um todo muito maior.
A parte compreendida por si só é pobre, perde sentido, posto que só possa ser entendida em sua relação com outras partes que compõe o todo, de onde um dia surgiu. A parte que tenta, por si, compreender o todo é mais pobre ainda, pois aplica à compreensão dos mais diversos conjuntos de fenômenos sua própria forma, essencialmente parcial. Se desejarmos um entendimento real, temos que entender a parte pelo todo e o todo por si próprio, compreendendo as especificidades de cada fenômeno em si e em sua relação com os demais.
Os juristas, ao se perguntarem sobre o Justo apenas dentro do próprio fenômeno jurídico estão a fazer esta redução, impossibilitando a compreensão profunda da realidade e, assim, das injustiças tão patentes em nossa sociedade. Tentar entender toda a sociedade pelo direito posto é diminuir o entendimento do todo, mistificando muito mais do que compreendendo.
A visão fragmentária do direito é a utilizada pela grande maioria dos juristas de hoje, que acreditam na norma como meio supremo de resolução dos problemas da sociedade, e, em meio a esta mistificação, acabam não tendo clareza do que realmente ocorre no mundo, dificultando o trabalho de sua transformação em algo melhor.
O juspositivismo é o exemplo máximo desta visão, surgindo ao se igualar todo o fenômeno jurídico à norma, formando uma filosofia para a manutenção do já existente, para reiteração do já dado. Assim pouco importa as diferenças entre os juspositivistas considerados estritos, como Kelsen e Hart, com os juspositivistas ditos éticos, como Alexy, Dworkin e Habermas.
Os dois primeiros (Alexy e Dworkin) tentam fundamentar o direito não apenas na norma, mas em algum conteúdo ético emanado de princípios que devem orientar a interpretação das normas. Estes princípios são positivados, mas sua abrangência acaba sempre sendo determinada pelo modo de pensar do julgador, que por sua vez reflete as idéias da própria sociedade, ou seja, o direito positivo acaba por ser moldado de acordo com a visão, e assim com os preconceitos, daqueles que julgam.
Kelsen tentou tornar o direito uma ciência pura, afastada da política justamente para ser neutra, e em sua visão, portanto, justa. No entanto, por construir uma teoria que de tão pura afasta-se da realidade concreta, ao equivaler diretamente o direito à norma, acabou por ser criticado e hoje já não é o preferido dos juristas. Na atualidade preferem temperar a norma com princípios que, em última análise, vão depender das concepções de mundo dos julgadores, é um juspositivismo em menor grau, mas ainda juspositivismo. Isto não rompe com o já dado, com a nossa realidade hoje, mas apenas reafirma-a, garantindo a manutenção da sociedade como ela é. A contradição do juspositivismo revela-se em sua própria história, primeiro tentando igualar o direito à norma pura e agora admite o caminho contrário, o de interpretar a norma de acordo com as supostas aspirações da sociedade, tornando a teoria já não tão pura.
Habermas, por sua vez, entende o direito como expressão do “consenso social”, como se todos da sociedade tivessem tacitamente acordado o direito como ele é, valoriza, assim, a institucionalização dos meios de discussão. Mas o que sua filosofia não dá conta de perceber é que mesmo pelos meios institucionalizados o poder se manifesta, fazendo o consenso seguir o que na realidade é o interesse do mais forte (geralmente o detentor do poder econômico).
Como o consenso é o que importa, não há uma acurada valoração sobre o que é bom ou ruim, acaba-se, assim, descambando para um vale-tudo (desde que consensual), onde o mais forte tende indiretamente (pelos meios institucionais, com a presença de lobbys) a se impôr. Como dizer que há um consenso social de que alguns devem morrer de fome e outros devem ser bilhonários, que tipo de consenso é este? Quem escolheu ser o mendigo? Este suposto consenso resulta de uma teoria que acaba servindo para justificar o presente, ajudando na manutenção do status quo. Vale lembrar que o próprio Habermas desconfiou desta sua visão tempos depois de formulá-la, quando as torres gêmeas cairam, expondo a fragilidade de sua teoria do consenso, o que o leva a confessar:
"Desde 11 de Setembro, não paro de me perguntar se, diante de acontecimentos de tamanha violência como essa, toda a minha concepção de atividade orientada para o consenso, aquela que desenvolvo desde a Theorie des kommunikativen Handelns [Teoria da ação comunicativa], não está prestes a cair no ridículo.[1]"
Todas estas visões juspositivistas não servem para explicar por que o mundo continua tão injusto. Pior ainda, o jurista, ao se prender ao seu emaranhado de suposições e teorias que não partem do ser, mas do dever ser, acabam perdendo o foco das injustiças. A mistificação possibilita que a pessoa estritamente siga a norma estatal, como quis Kelsen, e, um juiz, se considerando justo por isso, dá sua decisão meramente de acordo com a norma.
Quantas vezes de fato a norma não é justa para aquele caso? Quando os nazistas ocupavam a França mantiveram um grupo de juízes franceses em seus cargos, mas julgando com base nas leis nazistas, o que fez com que mandassem vários franceses para a morte em campos de concentração. Da mesma forma uma pessoa que ler Habermas pode se sentir de consciência limpa ao julgar conforme a norma, posto que sua decisão foi dada com base em um consenso entre os homens. Volto a perguntar, quantos mendigos fizeram lobby para aprovar o tal “consenso” no congresso?
Esta desvinculação da necessidade de pensar o Justo é decorrente da tendência do jurista de observar o todo pela parte, de conceber a justiça a partir da norma. Esta interpretação da realidade pelo que é jurídico, como dizíamos, gera mais mistificação do que entendimento.
Nós juristas debatemos a cidadania e todos aqui concordarão que ela deve ser melhorada, ampliada, e para que isso aconteça é necessário que seja garantida uma melhor vida para todos, maior igualdade, maior liberdade e melhores condições de desenvolvimento das potencialidades de todos. Ora, esta cidadania é a cidadania material, o que queremos na nossa vida, o que desejamos na concretude de nossa existência.
A cidadania usualmente debatida pelos juristas é uma cidadania meramente formal, é um dever ser da cidadania que não necessariamente condiz com a realidade. Como é possível tantas leis, tanto debate, e ainda pessoas morrendo de fome? Para entender a realidade o jurista deve sair de seu pequeno mundo jurídico e ir à materialidade, à concretude das relações sociais que geram a desigualdade.
Para alcançarmos a cidadania verdadeiramente almejada, aquela de participação e justiça social para todos, ao invés de simplesmente debater instrumentos jurídicos devemos adentrar nas razões concretas que levaram às transformações ocorridas em nossa sociedade que impactaram nas condições de vida dos cidadãos. Estas transformações não são geradas pela norma, antes, a manutenção da norma em si geralmente expressa a continuidade, romper com a norma dada é que expressa transformação, sair do formalismo jurídico estabelecido a priori é que é verdadeiramente representa o novo. A própria formulação do que seja cidadania demonstra isso, em épocas de grande ebulição social é que o próprio conceito ganha nova significação, como poderemos observar em uma brevíssima análise histórica.
Como vimos até aqui em nosso curso, em um primeiro momento cidadania é compreendida meramente como o vínculo entre o cidadão e o Estado, ao qual ele pertence. Esta cidadania diz respeito tão-somente aos deveres do súdito para com o soberano, não há aqui direitos. O Estado é concebido como extensão do próprio soberano ou como patrimônio deste, estamos falando no período do absolutismo, onde a burguesia crescente ainda não havia tomado o poder.
O segundo momento da cidadania é aquele alcançado com as revoluções inglesa, americana e francesa, que têm o condão de alçar a burguesia ao poder, rompendo com a lógica de privilégios absolutistas e consolidando o capitalismo. Surge o Estado impessoal como conhecemos, que, de acordo com a doutrina do laissez-faire, inspirada pelas idéias de Locke e Adam Smith, tem como função garantir a propriedade privada, a liberdade de contratação e a igualdade formal, ou seja, a igualdade de todos meramente em relação à lei.  É a era do liberalismo econômico e o Estado não deve intervir para garantir o bem estar dos cidadãos, posto que contrariaria as “leis naturais” do mercado. Por detrás da idéia de igualdade, no entanto incluíam-se os preconceitos da época e, assim, esta igualdade era uma igualdade simplesmente entre os já iguais. Kant, por exemplo, defendia que apenas aqueles que tivessem posses suficientes para não ter que trabalhar poderiam votar. Na cidadania liberal, assim, mesmo os direitos políticos eram restringidos.
Com o aprofundamento do fosso social e o surgimento de doutrinas que contrariavam o pensamento liberal, como o marxismo, o cenário estava pronto para novas revoluções, como a que ocorreu na Rússia em 1917. Os países liberais, temerosos de que revoluções de inspiração socialista pudessem se expandir para seu território, concederam mais direitos ao proletariado, de forma a amenizar as revoltas, suprimindo a possibilidade de revolução. A Constituição de Weimar de 1919 foi feita principalmente para amainar os ânimos na Alemanha que era perigosamente próxima à recém fundada URRS e estava na iminência da revolução. Assim surgem os direitos sociais, aqueles que representam certa participação de todos na produção social, proporcionando alguma base material à igualdade que até então era plenamente formal. Este é o terceiro momento da cidadania, que se completa com a crise de 1929 e a subseqüente depressão dos anos 30, que dão origem ao New Deal de Roosevelt e fazem emergir o keynesianismo como ortodoxia econômica. Após a segunda guerra consolida-se em definitivo o modelo de Estado de bem estar social, sendo utilizado praticamente em todo o mundo. Dentre as explicações da nova forma de cidadania decorrente do novo modelo de Estado, a que ganhou maior repercussão foi a de Marshall, que a entende como a conjugação de três tipos de direitos, os direitos civis, políticos e sociais.
Como podemos ver pela análise histórica, a cidadania é, em si, um conceito vago, que é modificado com o passar do tempo, dependendo da concretude das relações sociais para se realizar. Notamos, em linhas gerais, uma evolução do conceito de forma a melhorar a qualidade de vida das pessoas, privilegiando a igualdade, a justiça social. Está, no entanto, longe de ser um conceito já pronto, que já alcançou seu limite máximo, de fato muito falta para que nossa sociedade possa ser considerada justa.
Isso não significa também que o conceito não possa sofrer involuções, ou ainda que, mesmo evoluindo-se o que se entende por cidadania, esta evolução se dê do ponto de vista formal, não averiguável na realidade. Explico: nada impede que haja uma expansão conceitual ao mesmo tempo em que ocorre uma diminuição material da cidadania. Se o bem-estar das pessoas, sua qualidade de vida, suas condições de desenvolvimento, não melhoram, o que há na realidade é uma diminuição concreta da cidadania.
Aqui voltamos ao problema da forma de enxergar o mundo que tem o jurista que, atendo-se à norma ou à conceituação jurídica do que é a cidadania não consegue compreender o que realmente importa, a materialidade das coisas.  Focando toda sua análise em instrumentos jurídicos desvinculados do todo social ele não age de acordo com realidade, que está no conjunto dos campos da atividade humana. O exemplo da reserva do possível e as normas consideradas programáticas denunciam exemplarmente a distância que há entre a norma e o mundo real.
De que adianta a Constituição dizer que todos os cidadãos têm direito a uma vida digna, à morada, ao estudo, se isso não ocorre na realidade? Os mais progressistas diriam que nossa constituição é dirigente e, por isso, positiva tarefas que devem o mais rápido possível ser cumpridas pelo poder público. Mas, e quando o poder público age de maneira inversa ao cumprimento, quando, por exemplo, diminui o tamanho do Estado, minimizando a possibilidade material de cumprir com os direitos sociais prescritos, o que fazer? Deve o juiz alegar “reserva do possível” e não obrigar o Estado a se responsabilizar por, por exemplo, refugiados climáticos?
O Estado deve garantir os direitos sociais e geralmente o faz, ou tenta, por meio de uma ação governamental chamada genericamente de política pública, que, do mesmo jeito que a cidadania, representa um conceito vago, um termo equívoco que depende da materialidade para se caracterizar. Muito se fala em estabelecer um conceito jurídico de políticas públicas, acreditando-se em algum ponto, que o controle do judiciário possa ser suficiente para a resolução da questão mais profunda, subjacente, que é a busca pela justiça social
Mas o que resultaria desse conceito jurídico de políticas públicas? Resultaria uma conceituação formal de políticas públicas, um dever ser da política pública, um reducionismo jurídico, que em pouco poderia ajudar a compreender e transformar a realidade social. Quando o Supremo Tribunal Federal faz um controle constitucional material e alega “reserva do possível” ele já decidiu sobre essa possibilidade de intervir no papel do executivo, já definiu que não controlará, materialmente, as políticas públicas. Para o controle formal já existe o direito administrativo. Um debate, a meu ver, mais frutífero estaria na seguinte questão: Quando o judiciário diz que ele não pode julgar conforme a Constituição manda, o que ele está fazendo?
As questões quase nunca são colocadas por nós, juristas, desta forma nua, debatemos à exaustão instrumentos jurídicos e fundamentamos pedidos e decisões em conceitos vagos, tomados apenas pelo prisma da norma ou da construção jurisprudencial. Este mar de conceitos com múltiplas acepções nos leva a andar às cegas, acabamos perdendo o norte que deveria ser a busca da justiça social e nos conformamos com o já dado.
Quando a suprema corte, que deveria zelar pelo cumprimento da Constituição Federal, nega provimento a um pedido de construção de moradias populares para os sem-teto, pedido este feito com base na própria Constituição que assegura o direito à morada, algo nos é revelado. A negação de um direito constitucional alegando-se “reserva do possível” revela a fragilidade e subordinação do direito perante o todo social, especialmente à esfera econômica.
Se um sem teto roubar alguém para comer irá preso, se pedir o cumprimento de um direito constitucional receberá um não. O gasto com segurança pública no país chega a 40 bilhões de reais, quantas casas construiríamos com este valor? Como alegar, assim, reserva do possível? O montante pago à serviço da dívida no Brasil tangencia 200 bilhões, nossa Constituição não coloca pagar a dívida como a primeira necessidade do Estado brasileiro, muito antes vem o dever de zelar pela dignidade da pessoa humana. Imaginem um mendigo entrando com uma ação para pleitear seus direitos constitucionalmente previstos, parem um instante, agora pensem na possibilidade de um presidente “dar calote” nos credores internacionais e verão como o próprio direito é insuficiente para a compreensão da realidade social.
Para um debate sobre a cidadania é necessário que compreendamos nossa sociedade e suas contradições, as razões pelas quais nosso povo sofre, para após isso empreendermos um debate de como o direito pode, de fato, servir de instrumento para a transformação. Partir da subordinação que há do direito, ao menos em última instância, à vontade econômica é um caminho mais seguro para compreendermos a cidadania, e, por meio de uma ação consciente, tentar ampliá-la efetivamente.
Continua.



[1]  HABERMAS, Jürgen APUD BENSAID, Daniel. Os irredutíveis : teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo : Boitempo, 2008, p. 11.

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