A cidadania é um dos temas mais debatidos nos círculos jurídicos na
atualidade, mas o que significa este termo tantas vezes empregado?
Ulysses Guimarães se referindo à Constituição de 88 dizia de uma
“Constituição Cidadã”, uma melhora em um serviço público por parte do
governo é considerada uma demonstração de cidadania, como também
manifestações como a parada gay são interpretados como expressão desta.
Cidadania tornou-se um termo com múltiplos sentidos sendo muito difícil
defini-lo, mas podemos perceber que associado a este termo há sempre
certa concepção de justiça, especialmente de justiça social, voltada
para a proteção dos oprimidos ou para o exercício de um direito de
todos.
Mesmo
com tanta cidadania por aí, qualquer pessoa ao defrontar-se com o mundo
acaba por se perguntar por que ele é tão injusto. Fome, frio,
desamparo, idosos e crianças morando na rua, sem educação, sem abrigo,
sem o mínimo de alimento para poder se desenvolver.
Por
que tantas pessoas passam necessidades enquanto outras, num número bem
mais reduzido, podem usufruir os mais diversos luxos? O que explica o
fato de um brasileiro deter, sozinho, cerca de trinta bilhões de dólares
enquanto grande parte dos outros vive com cerca de quinhentos reais por
mês. O que é a Justiça e o que é a cidadania em nossa sociedade? É este
o tipo de justiça e de cidadania que queremos?
Perguntando-nos
coisas assim, possibilitamos o surgimento de uma visão mais crítica de
nossa própria vida e de nossa relação com os outros. Questionando a
fundo nossa forma de ser em sociedade abre-se espaço para uma prática
diferente da atual, que permita a transformação do já existente em algo
melhor.
Os
juristas quando se enveredam por este caminho, de questionar o presente
visando a construção de um futuro melhor, geralmente o fazem
diretamente por meio de seu campo, sua área de conhecimento. Costumam se
perguntar como devem ser as normas jurídicas, que novos tipos de
direitos devem ser criados e como enquadrá-los no sistema vigente, para a
melhoria de nossa sociedade a partir do ponto onde ela hoje se
encontra.
Com
a crescente especialização do mundo atual, com a divisão cada vez mais
acentuada do trabalho, o próprio campo jurídico é fragmentado e passa-se
a não existir apenas advogados, mas sim tributaristas, penalistas,
civilistas, ambientalistas e por aí em diante. Cada um, ao pensar A
Justiça, acaba pensando apenas dentro do fragmento que compõe sua área
de atuação profissional, não extrapolando sua seara. Entende-se como
profissional antes de ser humano, limitando-se a estudar tão somente o
objeto de seu ganha-pão. Isto representa um grande problema para uma
justiça mais ampla, uma justiça não fragmentária.
O
próprio conhecimento jurídico como um todo é fragmento do conhecimento
geral, só dividido desta forma para fins didáticos. O próprio direito
também, por mais que os juristas tenham tentado separá-lo, ainda é
fragmento do todo social. Mesmo se apresentando em nossa sociedade como
norma estatal, o que lhe confere poder de coerção, em nada modifica seu
caráter de parcialidade, seu caráter de parte de um todo muito maior.
A
parte compreendida por si só é pobre, perde sentido, posto que só possa
ser entendida em sua relação com outras partes que compõe o todo, de
onde um dia surgiu. A parte que tenta, por si, compreender o todo é mais
pobre ainda, pois aplica à compreensão dos mais diversos conjuntos de
fenômenos sua própria forma, essencialmente parcial. Se desejarmos um
entendimento real, temos que entender a parte pelo todo e o todo por si
próprio, compreendendo as especificidades de cada fenômeno em si e em
sua relação com os demais.
Os
juristas, ao se perguntarem sobre o Justo apenas dentro do próprio
fenômeno jurídico estão a fazer esta redução, impossibilitando a
compreensão profunda da realidade e, assim, das injustiças tão patentes
em nossa sociedade. Tentar entender toda a sociedade pelo direito posto é
diminuir o entendimento do todo, mistificando muito mais do que
compreendendo.
A
visão fragmentária do direito é a utilizada pela grande maioria dos
juristas de hoje, que acreditam na norma como meio supremo de resolução
dos problemas da sociedade, e, em meio a esta mistificação, acabam não
tendo clareza do que realmente ocorre no mundo, dificultando o trabalho
de sua transformação em algo melhor.
O
juspositivismo é o exemplo máximo desta visão, surgindo ao se igualar
todo o fenômeno jurídico à norma, formando uma filosofia para a
manutenção do já existente, para reiteração do já dado. Assim pouco
importa as diferenças entre os juspositivistas considerados estritos,
como Kelsen e Hart, com os juspositivistas ditos éticos, como Alexy,
Dworkin e Habermas.
Os
dois primeiros (Alexy e Dworkin) tentam fundamentar o direito não
apenas na norma, mas em algum conteúdo ético emanado de princípios que
devem orientar a interpretação das normas. Estes princípios são
positivados, mas sua abrangência acaba sempre sendo determinada pelo
modo de pensar do julgador, que por sua vez reflete as idéias da própria
sociedade, ou seja, o direito positivo acaba por ser moldado de acordo
com a visão, e assim com os preconceitos, daqueles que julgam.
Kelsen
tentou tornar o direito uma ciência pura, afastada da política
justamente para ser neutra, e em sua visão, portanto, justa. No entanto,
por construir uma teoria que de tão pura afasta-se da realidade
concreta, ao equivaler diretamente o direito à norma, acabou por ser
criticado e hoje já não é o preferido dos juristas. Na atualidade
preferem temperar a norma com princípios que, em última análise, vão
depender das concepções de mundo dos julgadores, é um juspositivismo em
menor grau, mas ainda juspositivismo. Isto não rompe com o já dado, com a
nossa realidade hoje, mas apenas reafirma-a, garantindo a manutenção da
sociedade como ela é. A contradição do juspositivismo revela-se em sua
própria história, primeiro tentando igualar o direito à norma pura e
agora admite o caminho contrário, o de interpretar a norma de acordo com
as supostas aspirações da sociedade, tornando a teoria já não tão pura.
Habermas,
por sua vez, entende o direito como expressão do “consenso social”,
como se todos da sociedade tivessem tacitamente acordado o direito como
ele é, valoriza, assim, a institucionalização dos meios de discussão.
Mas o que sua
filosofia não dá conta de perceber é que mesmo pelos meios
institucionalizados o poder se manifesta, fazendo o consenso seguir o
que na realidade é o interesse do mais forte (geralmente o detentor do
poder econômico).
Como
o consenso é o que importa, não há uma acurada valoração sobre o que é
bom ou ruim, acaba-se, assim, descambando para um vale-tudo (desde que
consensual), onde o mais forte tende indiretamente (pelos meios
institucionais, com a presença de lobbys) a se impôr. Como dizer que há
um consenso social de que alguns devem morrer de fome e outros devem ser
bilhonários, que tipo de consenso é este? Quem escolheu ser o mendigo?
Este suposto consenso resulta de uma teoria que acaba servindo para
justificar o presente, ajudando na manutenção do status quo. Vale
lembrar que o próprio Habermas desconfiou desta sua visão tempos depois
de formulá-la, quando as torres gêmeas cairam, expondo a fragilidade de
sua teoria do consenso, o que o leva a confessar:
"Desde
11 de Setembro, não paro de me perguntar se, diante de acontecimentos
de tamanha violência como essa, toda a minha concepção de atividade
orientada para o consenso, aquela que desenvolvo desde a Theorie des kommunikativen Handelns [Teoria da ação comunicativa], não está prestes a cair no ridículo.[1]"
Todas
estas visões juspositivistas não servem para explicar por que o mundo
continua tão injusto. Pior ainda, o jurista, ao se prender ao seu
emaranhado de suposições e teorias que não partem do ser, mas do dever
ser, acabam perdendo o foco das injustiças. A mistificação possibilita
que a pessoa estritamente siga a norma estatal, como quis Kelsen, e, um
juiz, se considerando justo por isso, dá sua decisão meramente de acordo
com a norma.
Quantas
vezes de fato a norma não é justa para aquele caso? Quando os nazistas
ocupavam a França mantiveram um grupo de juízes franceses em seus
cargos, mas julgando com base nas leis nazistas, o que fez com que
mandassem vários franceses para a morte em campos de concentração. Da
mesma forma uma pessoa que ler Habermas pode se sentir de consciência
limpa ao julgar conforme a norma, posto que sua decisão foi dada com
base em um consenso entre os homens. Volto a perguntar, quantos mendigos
fizeram lobby para aprovar o tal “consenso” no congresso?
Esta
desvinculação da necessidade de pensar o Justo é decorrente da
tendência do jurista de observar o todo pela parte, de conceber a
justiça a partir da norma. Esta interpretação da realidade pelo que é
jurídico, como dizíamos, gera mais mistificação do que entendimento.
Nós
juristas debatemos a cidadania e todos aqui concordarão que ela deve
ser melhorada, ampliada, e para que isso aconteça é necessário que seja
garantida uma melhor vida para todos, maior igualdade, maior liberdade e
melhores condições de desenvolvimento das potencialidades de todos.
Ora, esta cidadania é a cidadania material, o que queremos na nossa
vida, o que desejamos na concretude de nossa existência.
A
cidadania usualmente debatida pelos juristas é uma cidadania meramente
formal, é um dever ser da cidadania que não necessariamente condiz com a
realidade. Como é possível tantas leis, tanto debate, e ainda pessoas
morrendo de fome? Para entender a realidade o jurista deve sair de seu
pequeno mundo jurídico e ir à materialidade, à concretude das relações
sociais que geram a desigualdade.
Para
alcançarmos a cidadania verdadeiramente almejada, aquela de
participação e justiça social para todos, ao invés de simplesmente
debater instrumentos jurídicos devemos adentrar nas razões concretas que
levaram às transformações ocorridas em nossa sociedade que impactaram
nas condições de vida dos cidadãos. Estas transformações não são geradas
pela norma, antes, a manutenção da norma em si geralmente expressa a
continuidade, romper com a norma dada é que expressa transformação, sair
do formalismo jurídico estabelecido a priori é que é
verdadeiramente representa o novo. A própria formulação do que seja
cidadania demonstra isso, em épocas de grande ebulição social é que o
próprio conceito ganha nova significação, como poderemos observar em uma
brevíssima análise histórica.
Como
vimos até aqui em nosso curso, em um primeiro momento cidadania é
compreendida meramente como o vínculo entre o cidadão e o Estado, ao
qual ele pertence. Esta cidadania diz respeito tão-somente aos deveres
do súdito para com o soberano, não há aqui direitos. O Estado é
concebido como extensão do próprio soberano ou como patrimônio deste,
estamos falando no período do absolutismo, onde a burguesia crescente
ainda não havia tomado o poder.
O
segundo momento da cidadania é aquele alcançado com as revoluções
inglesa, americana e francesa, que têm o condão de alçar a burguesia ao
poder, rompendo com a lógica de privilégios absolutistas e consolidando o
capitalismo. Surge o Estado impessoal como conhecemos, que, de acordo
com a doutrina do laissez-faire, inspirada pelas idéias de Locke e
Adam Smith, tem como função garantir a propriedade privada, a liberdade
de contratação e a igualdade formal, ou seja, a igualdade de todos
meramente em relação à lei. É a era do liberalismo
econômico e o Estado não deve intervir para garantir o bem estar dos
cidadãos, posto que contrariaria as “leis naturais” do mercado. Por
detrás da idéia de igualdade, no entanto incluíam-se os preconceitos da
época e, assim, esta igualdade era uma igualdade simplesmente entre os
já iguais. Kant, por exemplo, defendia que apenas aqueles que tivessem
posses suficientes para não ter que trabalhar poderiam votar. Na
cidadania liberal, assim, mesmo os direitos políticos eram restringidos.
Com
o aprofundamento do fosso social e o surgimento de doutrinas que
contrariavam o pensamento liberal, como o marxismo, o cenário estava
pronto para novas revoluções, como a que ocorreu na Rússia em 1917. Os
países liberais, temerosos de que revoluções de inspiração socialista
pudessem se expandir para seu território, concederam mais direitos ao
proletariado, de forma a amenizar as revoltas, suprimindo a
possibilidade de revolução. A Constituição de Weimar de 1919 foi feita
principalmente para amainar os ânimos na Alemanha que era perigosamente
próxima à recém fundada URRS e estava na iminência da revolução. Assim
surgem os direitos sociais, aqueles que representam certa participação
de todos na produção social, proporcionando alguma base material à
igualdade que até então era plenamente formal. Este é o terceiro momento
da cidadania, que se completa com a crise de 1929 e a subseqüente
depressão dos anos 30, que dão origem ao New Deal de Roosevelt e
fazem emergir o keynesianismo como ortodoxia econômica. Após a segunda
guerra consolida-se em definitivo o modelo de Estado de bem estar
social, sendo utilizado praticamente em todo o mundo. Dentre as
explicações da nova forma de cidadania decorrente do novo modelo de
Estado, a que ganhou maior repercussão foi a de Marshall, que a entende
como a conjugação de três tipos de direitos, os direitos civis,
políticos e sociais.
Como
podemos ver pela análise histórica, a cidadania é, em si, um conceito
vago, que é modificado com o passar do tempo, dependendo da concretude
das relações sociais para se realizar. Notamos, em linhas gerais, uma
evolução do conceito de forma a melhorar a qualidade de vida das
pessoas, privilegiando a igualdade, a justiça social. Está, no entanto,
longe de ser um conceito já pronto, que já alcançou seu limite máximo,
de fato muito falta para que nossa sociedade possa ser considerada
justa.
Isso
não significa também que o conceito não possa sofrer involuções, ou
ainda que, mesmo evoluindo-se o que se entende por cidadania, esta
evolução se dê do ponto de vista formal, não averiguável na realidade.
Explico: nada impede que haja uma expansão conceitual ao mesmo tempo em
que ocorre uma diminuição material da cidadania. Se o bem-estar das
pessoas, sua qualidade de vida, suas condições de desenvolvimento, não
melhoram, o que há na realidade é uma diminuição concreta da cidadania.
Aqui
voltamos ao problema da forma de enxergar o mundo que tem o jurista
que, atendo-se à norma ou à conceituação jurídica do que é a cidadania
não consegue compreender o que realmente importa, a materialidade das
coisas. Focando toda sua análise em instrumentos jurídicos
desvinculados do todo social ele não age de acordo com realidade, que
está no conjunto dos campos da atividade humana. O exemplo da reserva do
possível e as normas consideradas programáticas denunciam exemplarmente
a distância que há entre a norma e o mundo real.
De
que adianta a Constituição dizer que todos os cidadãos têm direito a
uma vida digna, à morada, ao estudo, se isso não ocorre na realidade? Os
mais progressistas diriam que nossa constituição é dirigente e, por
isso, positiva tarefas que devem o mais rápido possível ser cumpridas
pelo poder público. Mas, e quando o poder público age de maneira inversa
ao cumprimento, quando, por exemplo, diminui o tamanho do Estado,
minimizando a possibilidade material de cumprir com os direitos sociais
prescritos, o que fazer? Deve o juiz alegar “reserva do possível” e não
obrigar o Estado a se responsabilizar por, por exemplo, refugiados
climáticos?
O
Estado deve garantir os direitos sociais e geralmente o faz, ou tenta,
por meio de uma ação governamental chamada genericamente de política
pública, que, do mesmo jeito que a cidadania, representa um conceito
vago, um termo equívoco que depende da materialidade para se
caracterizar. Muito se fala em estabelecer um conceito jurídico de
políticas públicas, acreditando-se em algum ponto, que o controle do
judiciário possa ser suficiente para a resolução da questão mais
profunda, subjacente, que é a busca pela justiça social
Mas
o que resultaria desse conceito jurídico de políticas públicas?
Resultaria uma conceituação formal de políticas públicas, um dever ser
da política pública, um reducionismo jurídico, que em pouco poderia
ajudar a compreender e transformar a realidade social. Quando o Supremo
Tribunal Federal faz um controle constitucional material e alega
“reserva do possível” ele já decidiu sobre essa possibilidade de
intervir no papel do executivo, já definiu que não controlará,
materialmente, as políticas públicas. Para o controle formal já existe o
direito administrativo. Um debate, a meu ver, mais frutífero estaria na
seguinte questão: Quando o judiciário diz que ele não pode julgar
conforme a Constituição manda, o que ele está fazendo?
As questões quase
nunca são colocadas por nós, juristas, desta forma nua, debatemos à
exaustão instrumentos jurídicos e fundamentamos pedidos e decisões em
conceitos vagos, tomados apenas pelo prisma da norma ou da construção
jurisprudencial. Este mar de conceitos com múltiplas acepções nos leva a
andar às cegas, acabamos perdendo o norte que deveria ser a busca da
justiça social e nos conformamos com o já dado.
Quando
a suprema corte, que deveria zelar pelo cumprimento da Constituição
Federal, nega provimento a um pedido de construção de moradias populares
para os sem-teto, pedido este feito com base na própria Constituição
que assegura o direito à morada, algo nos é revelado. A negação de um
direito constitucional alegando-se “reserva do possível” revela a
fragilidade e subordinação do direito perante o todo social,
especialmente à esfera econômica.
Se
um sem teto roubar alguém para comer irá preso, se pedir o cumprimento
de um direito constitucional receberá um não. O gasto com segurança
pública no país chega a 40 bilhões de reais, quantas casas
construiríamos com este valor? Como alegar, assim, reserva do possível? O
montante pago à serviço da dívida no Brasil tangencia 200 bilhões,
nossa Constituição não coloca pagar a dívida como a primeira necessidade
do Estado brasileiro, muito antes vem o dever de zelar pela dignidade
da pessoa humana. Imaginem um mendigo entrando com uma ação para
pleitear seus direitos constitucionalmente previstos, parem um instante,
agora pensem na possibilidade de um presidente “dar calote” nos
credores internacionais e verão como o próprio direito é insuficiente
para a compreensão da realidade social.
Para
um debate sobre a cidadania é necessário que compreendamos nossa
sociedade e suas contradições, as razões pelas quais nosso povo sofre,
para após isso empreendermos um debate de como o direito pode, de fato,
servir de instrumento para a transformação. Partir da subordinação que
há do direito, ao menos em última instância, à vontade econômica é um
caminho mais seguro para compreendermos a cidadania, e, por meio de uma
ação consciente, tentar ampliá-la efetivamente.
Continua.
[1] HABERMAS, Jürgen APUD BENSAID, Daniel. Os irredutíveis : teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo : Boitempo, 2008, p. 11.
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