PATRÍCIA
PETERLI PARTICHELLIPsicóloga. Mestranda em Psicologia
Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo. Membro do Centro de
Apoio aos Direitos Humanos “Valdício Barbosa dos Santos (Léo)” – CADH. patriciapeterli@gmail.com.
Resumo:
O presente artigo
problematiza a construção do que vem a ser considerado como história oficial
brasileira e a utilização da memória como enfrentamento ao regime de silenciamento imposto para que parte da
história seja ofuscada e não produza transformações no presente. Tal reflexão
passa pela desconstrução da noção de pobreza atrelada à criminalidade e
naturalização das violações dos direitos humanos, sobretudo, direcionadas aos segmentos
pauperizados e pela tortura como prática que não ficou restrita à escravidão ou
aos porões do regime militar.
Palavras-chave: memória;
combate à tortura; história.
História
e Memória
“A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como
ouro falso; a palavra foi feita para dizer"
-Graciliano
Ramos, 1948-.
Em 2012 o Brasil completa uma década de
adesão ao Dia Mundial de Combate à Tortura, e é fundamental falarmos dessa
prática e das inúmeras tentativas que estão colocadas para que se tenha a
impressão de que ela ficou num passado ofuscado, distante.
É
cheirando aos acontecimentos passados e presentes na história desse país que
este artigo, então, se propõe a dizer,
com a potência acima defendida por Graciliano Ramos, acreditando em outras
possibilidades de se escrever a história, contadas por qualquer um e não
somente pelos santos, pelas vítimas ou pelos tiranos, como nos anunciou o
italiano Alessandro Portelli (1997).
Apostando,
também, que promulgar histórias de lutas travadas cotidianamente, sem legendas
ou reconhecimento, se coloca como resistência a um poder que massifica e impõe
uma história linear e que dá os créditos aos seus heróis e mocinhos em
conivência com os interesses de uma classe dominante. As narrativas dos
“vencidos”, das histórias comuns que podem ser interessantes e contatadas por
qualquer um, são substituídas pela “história oficial celebrativa” (CHAUÍ, 1994,
p. xviii), ofuscando os elementos heterogêneos que compõem a história.
O “sequestro da memória” dissipado pelos meios
de comunicação de massa divulga uma história homogênea, oficializada por
binaridades que marcam os lugares dos vencedores – os “bons”, os heróis – e dos
vencidos – os rebeldes, os bárbaros –, aqueles que geralmente perderam a luta
porque precisavam mesmo ser eliminados pelo bem de uma nação. Banidos.
Exterminados em nome da segurança nacional.
Uma
intensa produção de silenciamento dos “vencidos” continua a tentar calar a
resistência política desses personagens da história a favor da vida, que
carregam nas marcas e no corpo o peso do funcionamento perverso de um modelo
econômico.
O
que a hegemonia considera ignorância, este artigo considera parte. Tão
importante quanto. Igual em interesse, e especialmente interessante por
falarmos de memórias daqueles que, mesmo sem reconhecimento pelas tantas lutas,
e por elas exterminados, e por elas torturados, e, em nome de tantos,
amontoados como monturos, queimados nas novas fogueiras da modernidade – os
alvos das armas legitimadas pelo Estado –, participaram ativamente de uma luta
coletiva pela transformação de um país. E participam. Gente com voz ativa e
política, ao contrário do que tentam afirmar ao pregarem em suas peles a figura
de bárbaros, rebeldes, os novos subversivos, como tarja que causa medo e
insegurança na “caça as bruxas” dos nossos dias.
Acuada
pelo medo e insegurança, a sociedade incorpora em sua prática ações de
intolerância suavemente disparadas no cotidiano, tão violentas quanto as ações
do Estado contra uma parcela considerada moralmente inferior e causadora de
desordem, institucionalizando a violação dos direitos humanos. Segundo Passos
(2002), “Há microviolências do cotidiano que indicam uma sinistra
interiorização do Estado violento em nós” (p.256).
É
para iluminar histórias de gente sem nome nem identidade, sem assinatura ou
medalhas e que lutam em nome de um coletivo que estas linhas se colocam.
Coletivo, conforme afirma Guattari (1992), é entendido
[...] no sentido de
uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius,
assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de
uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos
(p. 20).
Personagens
anônimos da história de um país, medíocres, apesar dos gritos, dos sussurros,
dos cartazes e do sangue derramado. Histórias sem representatividade e repletas
de fragmentos de uma realidade da qual compartilham, como colocou Foucault
(1977) acerca d’A vida dos homens infames.
E
para enxergar essas vidas é preciso acender um foco de luz. Um feixe que
permita tirar da obscuridade as vidas que a cada dia têm sido mais silenciadas.
Caladas. Emudecidas. Costurar a história a partir de outras linhas permite
ampliar o mundo.
Divertamo-nos,
se quisermos, vendo aí uma revanche: a chance que permite que essas pessoas
absolutamente sem glória surjam do meio de tantos mortos, gesticulem ainda,
continuem manifestando sua raiva, sua aflição ou sua invencível obstinação em
divagar, compensa talvez o azar que lançara sobre elas, apesar de sua modéstia
e de seu anonimato, o raio do poder (FOUCAULT, 2006, p.210).
É
iluminando estes pontos obscuros da história que poderemos abrir discussões
sobre práticas que não ficaram num passado remoto, no segredo da história ou no
porão de uma memória.
Práticas
como a tortura, que na ditadura militar brasileira ceifou a vida de inúmeros
militantes, não podem ficar estranguladas por um silêncio que hoje continua a
torturar seus familiares e matar outras vidas que denunciam no corpo e na forma
de vida ou sobrevida de se colocarem no mundo, o funcionamento da lógica
capitalista.
Pensar
a tortura como crime de lesa-humanidade, sem prescrição e inafiançável, permite
não somente resgatar a memória política do Brasil, mas combater práticas semelhantes
que têm por objetivo banir a massa humana excedente e produzida pelo
capitalismo.
Arejar
a memória e resgatar a amplitude política de algumas ações consideradas imorais
e de “vazia rebeldia”, ajudam a ativar a potência política que clama por transformação
de uma realidade que não ficou estancada nas cartilhas de história do Brasil.
Segurança
Criminal em resposta à Insegurança Social: a produção do medo e a
criminalização da pobreza em questão
Quem se defende porque lhe tiram o ar
ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender
ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender
-Bertold Brecht-.
Brasil,
cenário neoliberal. Produção planetária e em série de formas de viver, sentir e
agir, para consumo de todas as formas e gostos. De acordo com Rolnik (1997), a
“produção de kits de perfis-padrão” permite que estas
formas de vida sejam dissipadas pela mídia e consumidas de acordo com cada
órbita do mercado como produtos-padrão, como formas de vida homogêneas.
Num mundo onde o
consumo – seja de formas de vida, seja de mercadorias – é o imperativo, o
trabalho é o carro-chefe para que as pessoas se sintam incluídas na lógica de
mercado. E não se trata de qualquer trabalho, o emprego fixo é o que se
vislumbra, na busca por uma ponta de estabilidade em meio ao turbilhão de
informações e inconstâncias. Segundo Coimbra (2001),
[...] desde o início do nosso século o Estado
brasileiro e seus diferentes dispositivos vêm produzindo subjetividades nas
quais o ‘emprego fixo’ e uma ‘família organizada’ tornam-se padrões de
reconhecimento, aceitação, legitimação social e de direito à vida. Fugir desses
territórios modelares significa ingressar na enorme legião dos ‘perigosos’,
daqueles que devem ser olhados com desconfiança e, no mínimo, afastados e
evitados (p.131).
Esta “legião de
perigosos” se torna alvo a partir do dispositivo da periculosidade, que, segundo
Foucault (2009), surge com a emergência do capitalismo industrial, na Europa,
em fins do século XIX. Caracteriza-se por direcionar o foco não somente para as
ações que o indivíduo tenha praticado, mas também para as que ele poderá
praticar, no controle das suas virtualidades realizado através de técnicas de
saber/poder, de leis e submissão a normas.
Os “perigosos”, neste
sentido, passam a ser aqueles que não conseguem atender à lógica de consumo e
são considerados como perigosos em “si”, em sua natureza, sua essência. Segundo
Bauman (1998), estes são os chamados “consumidores falhos”, os que não
conseguem atender às exigências do mercado e que, por isso, são produzidos como
seres estranhos e ameaçadores da ordem, causadores, portanto, de insegurança e
mal-estar.
Colocando em questão
estas produções, temos, então, a competição de parte da população por uma
suposta estabilidade no mercado de trabalho, para que atenda à lógica de
consumo, ao par que outra parte sequer tem possibilidades de disputa, causadora
de repulsa por essência e composta por seres indesejáveis, demônios criminosos
em potencial. A saída para esta parcela é buscar empregos inseguros e
desqualificados com salários igualmente desqualificados e inseguros (Wacquant,
2008).
A produção de desejo
que é para todos acaba por erguer um muro que separa o mundo entre aqueles que
têm os meios para participarem deste consumo, e aqueles que não têm.
As parcelas
empobrecidas da população, neste embalo, são criminalizadas como se a
periculosidade e a repulsa fossem seu recheio, prestes a prejudicar, desordenar
e sujar o cenário tão sonhado de pureza social. Figuras suspeitas são
produzidas, apavorando as misturas destes segmentos pauperizados com a parte
asséptica da população. Assim, ferve um discurso que clama por afastamento e
eliminação da pobreza, como se isso traduzisse segurança. Conforme afirma
Coimbra (2009),
Para esses ‘enfermos’ – vistos como perigosos
e ameaçadores – são produzidas identidades cujas formas de sentir, viver, agir
se tornam homogêneas e desqualificadas. São crianças e adolescentes já na
marginalidade ou que poderão – porque pobres – ser atraídos para tal condição e
que devem ser exterminados. A modernidade exige cidades limpas, assépticas,
onde a miséria – já que não pode mais ser escondida e/ou administrada – deve
ser eliminada. Eliminação não pela superação, mas pelo extermínio daqueles que
a expõem incomodando os ‘olhos, ouvidos e narizes’ das classes mais abastadas
(p.320).
Com
a proliferação dos discursos que clamam pelo extermínio da massa podre da
população, cada vez mais tem sido reproduzida a idéia de segurança como se ela
se tratasse de policiamento, fortalecimento do Estado que se apresenta
fortemente armado para controle e contenção dos segmentos empobrecidos,
ressoando a idéia de que são potencialmente criminosos, e, por isso, podem
incomodar a paz e a vida digna dos legitimados “cidadãos de bem”.
Segundo
Wacquant (2007), este sentimento de insegurança e de ilusão de que a segurança
seria fornecida pelo Estado através de segurança criminal é resultado de um
acuamento do Estado Social, que não mais protege as oscilações e riscos da
economia, mas que “capacita” para a competição no mercado. A insegurança de
nunca estar suficientemente capacitado abarca inclusive a classe média, que não
consegue projetar seu próprio futuro. Em resposta ao pedido por estabilidade de
vida e distanciado da responsabilidade pelas demandas sociais, o Estado investe
em segurança criminal e políticas penais. Sobre esta mesma questão, afirma
Foucault (2010),
O
que o Estado propõe como pacto com a população é: ‘Vocês estarão seguros’.
Garantidos contra tudo o que pode ser incerteza, acidente, prejuízo, risco.
Vocês estão doentes? Terão a seguridade social! Não têm trabalho? Terão um
seguro-desemprego! Há um vagalhão? Criaremos um fundo de solidariedade! Há
delinqüentes? Vamos assegurar-lhes sua correção, uma boa vigilância policial!
(p.172)
Este
funcionamento, ao passo que desresponsabiliza o coletivo, afirma um discurso de
responsabilidade individual e uma lógica de meritocracia que atribui o
“sucesso” às qualidades individuais, em contrapartida, reforçando o dito “fracasso”
igualmente, como inferioridade do
indivíduo em relação aos demais.
Toda
essa engenharia também funciona por meio da produção de um silêncio que emperra
a discussão das questões de modo a reduzi-las a um campo individual, tendo como
efeito a culpabilização do indivíduo e a imposição de uma outra política acerca
dos acontecimentos e que interessa a determinados grupos. Acontecimentos estes,
ecoados pela mídia de maneira superficial e sensacionalista.
A
própria sociedade demanda por políticas punitivas, por mais policiamento nas
ruas, redução da maioridade penal, mais prisões e pela presença de um Estado
violento e repressor dos seus inimigos. E a produção da figura do “inimigo” é
perigosa porque atrelada a ela está o discurso de que toda ação é permitida para
sua eliminação.
Os
novos “inimigos internos”, diferentes daqueles que se opunham ao regime
militar, hoje, transitam em meio ao discurso democrático e são produzidos
juntamente com a forma de exterminá-los, ofuscá-los, arremessá-los para zonas
de esquecimento e calá-los, para que não denunciem em seus corpos e vivências o
funcionamento de um mundo produzido por todos, coletivamente.
Uma nova ‘Doutrina de Segurança Nacional’ tem
hoje como seu ‘inimigo interno’ não mais os opositores políticos, mas os
milhares de miseráveis que perambulam por nossos campos e cidades. Os milhares
de sem teto, sem terra, sem casa, sem emprego que, vivendo miseravelmente, põem
em risco a ‘segurança’ do regime (COIMBRA, 2002, p.84)
Um
discurso moral e individualizante reduz as imensas parcelas empobrecidas da
população e as silencia, como se não fossem dignas de denunciar as violências
cometidas contra elas diariamente. Este mesmo discurso é o que continua a
tentar silenciar os familiares e sobreviventes da ditadura militar brasileira,
com a produção da ignorância sobre este período e descaracterizando-o,
colocando-o num plano comum da história.
E
por falar em violência, é após estas pontuações até aqui que poderemos abrir
caminhos de conversas sobre os acobertamentos de perversidades como a tortura
na atualidade.
Escancarando
a tortura: caminhos para uma conversa sobre o silenciamento
O medo seca
a boca, molha as mãos e mutila. O medo de saber nos condena a ignorância; o
medo de fazer nos reduz a impotência. A ditadura militar, medo de escutar, medo
de dizer, nos converteu em surdos e mudos. Agora a democracia, que tem medo de
recordar, nos adoece de amnésia; mas não se necessita ter Sigmund Freud para
saber que não existe o tapete que possa ocultar a sujeira da memória
-Eduardo Galeano-.
Diferentemente
do suplício, prática punitiva adotada até fins do século XVIII que se
direcionava ao sofrimento do corpo, em público, de maneira a reafirmar o poder
do Soberano (Foucault, 1977), a passagem para a sociedade disciplinar fomentou
a prática da tortura, que tem como prerrogativas o escuro, o direcionamento
perverso das relações em conivência com uma certa política dominante e a
omissão.
A
tortura, ao contrário do suplício, sempre foi e sempre será apenas um pastiche
das grandes performances humanas: morais, políticas, religiosas ou científicas.
Uma prática dos porões, das sombras, dos sem rosto e sem voz, dos sem história.
A tortura só existe na história dos
torturados (SILVA, 2009, p.86. grifo
meu).
Não.
A prática da tortura não ficou soterrada pela poeira do passado, tampouco restrita
às senzalas ou aos governos ditatoriais. Continuam vigorando práticas de
terror, tortura, silenciamento e acobertamento de crimes cometidos contra os
direitos humanos.
O
caminho que percorremos tratando do aparecimento das chamadas “classes
perigosas” objetivou atentar para práticas de violência e tortura de forma
difusa e direcionada agora principalmente aos setores empobrecidos, o que na
ditadura se focava no combate aos opositores políticos.
Desde
1977, por meio da lei no 9.455, o Estado brasileiro passou a
considerar oficialmente a tortura como crime. De acordo com a Convenção da ONU
Contra a Tortura (1984):
[...] o termo ‘tortura’
designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou
mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela
ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puni-la por um ato que
ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de
intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada
em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto
por um funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções
públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou
aquiescência. (Artigo 1 da Resolução 39/46, da Assembléia Geral das Nações
Unidas, em 10 de dezembro de 1984.
Apesar
desta consideração, percebemos a intensa luta de familiares – seja dos
desaparecidos políticos, seja dos tantos chacinados na atualidade – pelo
combate à impunidade. Não bastasse a dor de terem perdido entes queridos,
precisam lutar avidamente pelo reconhecimento de seus mortos, ou, ainda, são
obrigados a ouvir nos telejornais diários as justificativas para tais atos,
como se fossem justificáveis: “era bandido”, “era envolvido com o tráfico”,
“era viciado em drogas”.
O
mesmo movimento de desumanização de uns em detrimento de outros. E a imposição
de um regime de silenciamento que
impede que tais acontecimentos sejam investigados e tenham seus responsáveis
punidos, pois é como se “em si” esses crimes fossem aceitáveis e produzissem
nas vítimas a culpabilização necessária para que eles pudessem ocorrer.
Muitas vezes o crime
permanece impune porque, mesmo que sua autoria seja conhecida, não existe nada
sendo feito que transforme tal conhecimento em um justo julgamento e
condenação. Esses familiares são as “vítimas ocultas” que não aparecem nos
dados estatísticos de morbi-mortalidade da violência. Essas vítimas sofrem
muito, sozinhas e desamparadas (JORGE, 2009, p.262).
A
tortura do corpo e da memória só se torna possível quando o “Outro” é
considerado moralmente inferior. Quando sua existência representa perigo. E,
sob um discurso de proteção da pátria, da população ou eliminação dos riscos,
autoriza-se e credibiliza-se ações de extermínio com a roupagem de defesa da sociedade.
Segundo
Foucault (2005), é com a introdução do racismo nos mecanismos do Estado que se
tornou possível a legitimação da eliminação de uns em defesa de outros. A noção
de racismo de Estado, neste sentido, se traduz como um corte entre o que deve
viver e o que deve morrer, como se a morte de uns imprimisse qualidade à vida
de outros. Morte, aqui, não diz somente da morte biológica, mas formas
indiretas de assassínio como a morte política, a rejeição ou a exposição à
morte.
A
partir deste entendimento, mais claro se torna o clamor da população e as ações
do Estado por políticas punitivas, por policiamento e eliminação dos
potencialmente perigosos, como se isso traduzisse segurança aos demais, aos que
oficialmente compõem a sociedade.
Torna-se
necessário problematizar, também, práticas de legitimação da tortura para
obtenção de confissões que têm sido utilizadas como ferramenta justamente por
aqueles que deveriam combater e punir tais práticas (Mourão, Jorge, Francisco,
2002). Pois esta forma de funcionamento só é possível quando a tortura de uns é
justificável mediante o discurso de defesa e proteção de outros.
Um
discurso que encobre e silencia as lutas daqueles que sobreviveram ou que tiveram
familiares mortos, triturando a história com o trator de uma verdade que convém
a uma classe dominante. Conforme afirma Coimbra (2008),
A não publicização, o
esquecimento e o silenciamento produzem uma dupla violação: além da que foi
sofrida – se nenhuma atitude for tomada por parte do atingido e/ou das
autoridades governamentais – continua-se, no dia a dia, a ser violentado. O
desrespeito do esquecimento, do silenciamento, da não investigação, do não
esclarecimento dos fatos e da não publicização significam novas violações
(p.12).
Mas a
resistência é sempre possível, a luta por outras memórias, outras verdades e por
outros fragmentos da história sempre insiste em se colocar. A memória como
instrumento de luta é no que apostamos.
Pela
afirmação de outras memórias: produzindo novas armas
Quando é
verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não encontra
quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou
pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos
outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada.
–Eduardo Galeano-.
Como
colocamos, há um investimento para que partes da história do Brasil não sejam
contadas, não sejam estampadas na memória brasileira. A produção de um
silenciamento que se dá muitas vezes nem diretamente pela mudez, mas pela
blindagem dos ouvidos a outros fragmentos da história. A outras vozes que
tornam públicas as marcas que tentaram deixar enterradas nos porões, afogadas
nos barris e cortadas pelas navalhas do passado. Porque elas pedem por
responsabilização, por investigação e combate à cultura de ignorância que tem
sido implementada para que as novas gerações não sejam esclarecidas deste
período da história e sequer tenham condições de avaliar as produções atuais
que ainda remetem a estas práticas.
Não
por acaso os torturadores colocavam adesivos em seus nomes nas fardas. Não por
acaso, arquivos da ditadura militar brasileira são desconhecidos pela
sociedade. Porque denunciam a perversidade de um regime que até hoje cala e
mortifica os familiares dos desaparecidos que não têm esclarecimentos acerca de
seus entes queridos.
Numa
lógica não tão divergente, inúmeros familiares não possuem investigação que
esclareça a morte dos seus, principalmente quando falamos de crueldades que
acontecem em nome das ações que exterminam miseráveis e são divulgadas como um
verdadeiro ato de “levar a paz” a uma sociedade que vivia numa suposta
“guerra”. Novamente está presente a produção da figura do inimigo. Inimigo este, que precisa ser combatido por uma guerra
que, ao final, faça reinar a paz. E nesta lógica perversa isso não é uma
contradição: a idéia de “guerra civil” é justamente implementada para que, no
combate ao inimigo, todo tipo de ação seja autorizado. E para combater os
endurecimentos da história, a memória deve ser usada como ferramenta.
Instrumento de enfrentamento. Produção de outras memórias que possibilitem que
novas histórias sejam compostas de maneira a dobrar essa lógica do poder que
massifica acontecimentos e os arremessa para uma “vala comum” da história.
E
é tornando público, falando sobre estas capturas, criando espaços que traiam
este silêncio, o medo de falar, a angústia do segredo, que pontos de potência
vão surgindo. Conforme afirma Foucault (2010),
[...]
designar as sedes, denunciá-las, falar delas em público é uma luta, não é
porque ninguém tivesse ainda consciência disso, mas é porque tomar a palavra
sobre esse assunto, forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer
quem fez o quê, designar o alvo, é uma primeira revirada do poder, é um
primeiro passo para outras lutas contra o poder (p.44).
E
tais dobras no poder já acontecem no nível das práticas cotidianas, na potência
dos movimentos sociais que denunciam e que revertem tais políticas perversas
produzindo novos modos de ser e agir neste mundo.
A
publicização da ação violenta autorizada pelo Estado contra os moradores de
Barra do Riacho, distrito de Aracruz, Espírito Santo, desapropriados de suas
moradias em maio de 2011. Os resistentes de Pinheirinho, São Paulo, que de
forma semelhante foram arrancados de suas casas em janeiro de 2012.
Resistências diárias. Lutas cotidianas. Enfrentamentos que se dão numa luta
pela vida. A favor da vida. Pela intensificação da vida. Contra o massacre e o
envenenamento da vida. Uma luta pela memória. Produção de outras memórias. Nada
mais potente do que acreditar que as fugas existem. Nada mais potente do que
fugir, ecoando Deleuze (1977): "[...] não há nada
mais ativo do que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir,
não forçosamente os outros, mas fazer fugir alguma coisa, fazer fugir um
sistema como se cava um túnel" (p.51).
Cavar
um túnel: encontrar armas. Tornar público o que está sob um discurso dominante
de defesa de uma determinada forma de vida - nas entrelinhas o massacre da vida
manifestada em tantas outras formas, não menos vivas. Tornar público significa
produzir memórias de todos, para todos. Memórias embutidas nos corpos daqueles
que estiveram ou não na ditadura, dos moradores de Barra do Riacho ou não. Uma
história que implique a participação de todos e luta de todos.
Disse
Eduardo Galeano que “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as
histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador”. É pela história dos
leões que este artigo ruge, pela afirmação da vida.
A fala, a
denúncia, o tornar público, nos retiram do território do segredo, do silêncio,
da clandestinidade. Com isso podemos sair do lugar de vítima fragilizada,
despotencializada e ocuparmos o da resistência, da luta, daquele que passa a
perceber que seu caso não é um acontecimento isolado; ele se contextualiza, faz
parte de outros e sua denúncia, esclarecimento e punição dos responsáveis abre
espaço e fortalece novas denúncias, novas investigações. A dimensão coletiva
desse caminho se afirma e, com isso, temos a possibilidade de começar a tocar na
impunidade; de mostrar que tal quadro (...) pode ser mudado, pode ser revertido
(COIMBRA, 2004.p.45).
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